Otávio Maia*
Quem passar em frente da Igreja de São Francisco, em João Pessoa, seja turista ou mesmo visitante natural da cidade, certamente se surpreenderá com uma imagem no mínimo inusitada, incomum, estranha e de certa forma até mesmo chocante. Toda a pedra do solo, bem como dos muros laterais do adro da Igreja, encontram-se branquinhos e limpinhos como nunca vistos antes, como nem mesmo a própria pedra em seu estado natural poderia jamais se encontrar. Diante de tamanho fato incomum, que certamente chamará a atenção e surpreenderá o passante ou visitante, por mais leigo que seja no assunto, com certeza se perguntará o que aconteceu ali, teria sido algum vento forte que passou e promoveu toda aquela limpeza ? ou será que a chuva intensa dos últimos dias limpou e deixou tudo branquinho???...Ironias à parte, o que observamos de fato naquele empreendimento, é um acontecimento que nos chama a atenção especialmente para a competência e a qualificação das pessoas que exercem cargos técnicos relevantes em algumas instituições de proteção do nosso patrimônio artístico/cultural. Trata-se na verdade de um tratamento de limpeza realizado através de um método completamente ultrapassado e inadequado para fachadas ou de partes importantes de monumentos históricos e ou artísticos, devido a enorme agressividade e destruição que pode ser promovida pelos fortes impactos de potentes jatos d'água, especialmente numa pedra porosa e frágil como o calcário. Na parte de azulejaria, os efeitos dessa metodologia de limpeza, podem ser extremamente nocivos e desastrosos, especialmente se o azulejo for como aquele encontrado no revestimento dos muros laterais da entrada da Igreja São Francisco, que apresenta uma cobertura de esmalte bastante fragilizada e em intenso processo de desprendimento da pedra, chegando muitas vezes a cair naturalmente apenas com o efeito das intempéries, provocando algumas perdas do material e deixando lacunas no revestimento de azulejo. Ali, o jato forte de água com certeza pode ser fatal e promover enormes quedas e perdas do material vítreo do azulejo, uma pessoa com a mínima faculdade de entendimento poderia saber disso perfeitamente, sem necessitar de maiores conhecimentos técnicos. Pois é exatamente diante disso que nos deparamos, foi exatamente o que aconteceu naquele local e do que estamos tratando aqui. Com uma"limpeza" que podemos considerar no mínimo sem critérios e sem amparo técnico científico nenhum, realizada recentemente, incontáveis e enormes lacunas de perdas foram abertas na cobertura de esmalte dos azulejos que formam os painéis do revestimento dos muros laterais do adro da igreja, a experiência foi destrutiva, dramática, um verdadeiro desastre. No momento da aplicação do jato d'água, o volume de desprendimentos e perdas que houve no esmalte, foi imenso, testemunhas oculares narraram o fato, muito embora isso nem fosse necessário pois qualquer pessoa, mesmo que não seja um "entendedor" do assunto, pode comprovar no local, as recentes marcas das enormes lacunas de perdas de material decorativo dos azulejos, que aconteceu ali. O que nos deixa mais indignados com esse fato, é ver que o nosso mais importante monumento barroco que temos no Estado, parte de sua integridade e originalidade continua sendo destruída, e o mais grave é saber que tal destruição é patrocinada exatamente pelo órgão ou instituição que deveria promover exatamente o contrário: a sua preservação acima de tudo. Pela placa que se encontra afixada no local, a ação foi promovida pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional - IPHAN, através de sua regional em João Pessoa e custou aos cofres públicos nada menos que R$ 180.000,00 (cento e oitenta mil reais), no nosso entendimento, um valor extremamente elevado para a realização de um tratamento equivocado e inadequado, que só provocou mais danos, mais destruição e problemas para aconservação e preservação da obra. Nos questionamos se nesse órgão existe de fato alguém com competência e conhecimento técnico suficiente para ocupar o cargo ou função que determina esse tipo de atitude. Se existe, sem dúvida nenhuma, evidentemente é alguém com deficiências primárias no diz respeito ao conhecimento de meios preventivos de conservação e preservação de bens culturais, essa pessoa necessita sem dúvida alguma se atualizar, estudar, se reciclar, muito embora, achemos que apenas um pouco de bom senso seria suficiente para saber que tal evento poderia causar uma tragédia naquela área da monumental obra arquitetônica, como aconteceu. Numa ação realmente técnica e criteriosa, mesmo que houvesse a possibilidade de se desconhecer os efeitos nocivos desse inadequado e desastroso método sobre a obra, o que já seria surpreendente, por se tratar de uma decisão a ser tomada exclusivamente por técnicos que teriam antes de tudo o dever e a obrigação de ser alguém que detém um amplo e profundo conhecimento técnico do assunto, alguém com larga experiência e boa formação na área, com conhecimentos atualizados e com capacidade para buscar permanentemente novidades tecnológicas que proporcionem resultados mais bem sucedidos, mais satisfatórios, alguém com capacidade para pesquisar e buscar métodos e materiais mais adequados e eficientes de intervenção sobre uma obra de arte, métodos que não representem maior agressão ao bem e que em momento algum promovam ou levem o risco de danos maiores à obra. Numa ação realizada com critérios de moderação, com consciência, com princípios de conhecimento técnico especializado, de responsabilidade e respeito pelo monumento e pela própria história, se realizaria no mínimo um exame, um teste, uma prova prévia em uma área pequena do local, para se conhecer se os efeitos ou resultados desta ação seriam satisfatórios ou não para o caso, antes de se adotar a medida para toda uma grande área, sem o menor cuidado ou preocupação com o que poderá ou não acontecer à obra. Tal experimento prévio, evidentemente não foi realizado, o que nos dá mais uma razão para questionar a competência técnica do responsável direto por aquela desastrada atitude. O que constatamos ali, na verdade se constitui em um crime contra o patrimônio público cultural nacional. Uma irresponsabilidade e um descaso promovido pelo órgão que deveria fazer exatamente a sua conservação baseada exclusivamente em critérios e conhecimentos estritamente técnicos/científicos, ou no mínimo agir com mais cautela e precaução em suas ações. Tal fato, se constitui em algo que justificaria até mesmo a provocação do Ministério Público Federal para investigar detalhadamente esse caso, inclusive seus custos, bem como a empresa que executou a ação. O mínimo de discernimento e de prudência, seria suficiente para se enxergar que tal processo seria completamente danoso para aquele local. Me questiono se trata-se de ignorância, irresponsabilidade, indiferença, descaso, desdenha com o bom senso do público e dos especialistas locais, por achar que ninguém perceberia, ou talvez tudo isso junto. Nos questionamos ainda como uma decisão tão importante fica na responsabilidade de pessoas sem qualificação especializada, sem conhecimento nem competência técnica, como uma decisão tão importante não passa no mínimo por uma comissão formada por técnicos de várias instituições, e consultores particulares autônomos, técnicos comprovadamente especialistas no assunto e que possam realmente assegurar as ações mais adequadas e corretas para casos como esses. Segundo o responsável pelo IPHAN na Paraíba, o Arquiteto urbanista Humbelino Peregrino de Albuquerque, a ação foi orientada e recomendada por técnicos da instituição, assessorados por outros técnicos do Estado da Bahia, e que tal ação faz parte de um projeto de"restauração" (restauração???) da parte de azulejaria para todo omonumento. - Questiono esse tipo de atitude que pessoas desinformadas no assunto nomeiam inescrupulosamente de "RESTAURAÇÃO", que tipo derestauração é essa que antes de tudo, promove na verdade uma destruição sem tamanho? Questionamos o Sr. Humbelino se esses técnicos são realmente especialistas com formação acadêmica ou no mínimo com larga experiência na área, ele não soube informar claramente. Indagado ainda se ele tinha conhecimento e consciência da destruição que houvera no local, fomos tentados por ele a todo custo, ser convencidos de que os azulejos não haviam sido lavados com os jatos d'agua, de não ser verdade nossa afirmação. Argumento completamente frágil diante do depoimento de pessoas que testemunharam a ação, bem como diante da documentação fotográfica do estado de conservação dos azulejos, anterior ao tratamento realizado, existente no projeto que nos mostrou. Fora essas comprovações, um especialista é perfeitamente capaz de identificar as áreas de perdas recentes. Outra questão a ser levantada é o porque da necessidade de se retirar a pátina natural que se formou na pedra. Sabemos que em alguns casos, onde o bem se localiza em área de grande atividade industrial e onde o índice de agentes poluentes existentes na atmosfera se apresenta bastante elevado, pode haver uma deposição desses agentes que em contato com a umidade presente na pátina podem provocar reações químicas e gerar substancias ácidas quer podem atacar o suporte, a pedra. No entanto, isso não se verifica na nossa cidade nem no sítio onde se localiza o monumento, o nosso ar é relativamente puro e limpo. Nesse caso, a pátina chega a ter uma função até mesmo protetora do bem, promovendo uma certa aglutinação da matéria superficial do suporte e criando uma cobertura que se constitui muitas vezes em escudos naturais contra as intempéries, além de se constituir de certa forma, em um registro da história e do tempo sobre o monumento. Questionamos ainda se foram feitos estudos preliminares nesse material? Se foram realizados estudos que comprovassem que a pátina estaria de fato causando prejuízos para a pedra do suporte, causando danos, se haveria indícios de destruição por ela provocados, pois só por esses motivos se justificaria a sua retirada total, e mesmo assim, de forma bastante criteriosa a fim de se evitar danos maiores à obra. Evidentemente que estudos mais precisos não foram realizados. Outra questão que também nos intriga é a passividade e até mesmo a invisibilidade quanto a isso, dos outros órgãos que atuam nesse setor. Onde se encontram os institutos de preservação do patrimônio histórico e artístico desta cidade, deste Estado?. Onde se encontram o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba - IPHAEP, a Comissão do Centro Histórico de João Pessoa, o Instituto dos Arquitetos do Brasil na Paraíba – IAB/PB, o Instituto Histórico e Geográfico do Estado, a Oficina Escola de Restauração, órgão técnico executor tão bem conceituado. Onde estão os outros técnicos especialistas locais? Porque não se manifestam, não se pronunciam a respeito? Porque não aparecem? Será que todos foram omissos nesse caso? Ou será que apenas nós percebemos a desastrosa ação? Como Especialista/Técnico na área de conservação e restauração depatrimônio cultural, ou simplesmente como cidadãos, não poderíamos jamais nos omitir diante daquilo que consideramos no mínimo uma ação prática extremamente mal orientada, mal conduzida, sem planejamento, sem estudos nem pesquisas preliminares necessárias, enfim, sem critério técnico, sem conhecimento e consciência da causa. Como especialista da área e tendo consciência da raridade de profissionais especializados no setor, e sabendo também que quem deveria realmente fiscalizar está promovendo o "evento", nos sentimos na obrigação, de denunciar este fato, pois além do compromisso profissional que temos, como cidadãos, temos também o compromisso moral de "vigiar", de examinar as ações inadequadas de quem teria a obrigação de atuar com critérios técnicos apropriados, e de fiscalizar até mesmo a si próprio. Já que isso não acontece, somos obrigados a cumprir esse papel enquanto agentes atuantes na área. Fiquem certos meus caros leitores, que com mais uma ou no máximo duas limpezas como essa, certamente não restarão mais nem mesmo fragmentos do esmalte dos painéis de azulejos que revestem os muros laterais do adro da Igreja, especialmente o da esquerda de quem adentra ao monumento.
Azulejos danificados
AZULEJOS DANIFICADOS
*Especialista em Conservação e Restauração dePatrimônio Cultural Móvel,
pela Escola de BelasArtes - EBA, da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.
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